"Examinem tudo, fiquem com o que é bom". Esse conselho foi dado pelo Apóstolo Paulo em sua Primeira Carta aos Tessalonicenses (I Ts 5:21). Quase dois milênios depois, cresci num contexto de proibições, quase sempre sem explicações ou com explicações pouco plausíveis.
Não beba! Não fale palavrões! Não use bermudas! Não vá ao cinema! Não faça tatuagens! O índex de proibições era grande e não tenho a intenção de discuti-las aqui, até mesmo porque muitos "não podes" já caíram em desuso e tantos outros estão sendo abandonados ou repensados.
Há, no entanto, uma restrição a que somos submetidos, sejamos religiosos ou não e que não tem origem em terceiros. Nós mesmos nos boicotamos em diversas situações pela não observância do conselho de Paulo: "examinem tudo".
Lemos notícias falsas e as espalhamos. Por causa delas, entramos em discussões infindas, ofendemos pessoas, criamos abaixo-assinados, proclamamos teorias conspiratórias que não resistem a poucos minutos de exame. Aceitamos o que nos foi dito passivamente, sem reflexão, sem busca por fontes que possam comprovar ou refutar o que recebemos. Nos sabotamos!
Não pense! Não pesquise! Não leia tudo, pois o título já diz o que você precisa. Comente com base nas suas conclusões ao ler o título. Nunca ouça uma música cujo estilo não te agrada. Não assista um filme que defende bandeiras diferentes das suas. Na escola, não estude temas que contrariem sua visão de mundo.
Sempre fui curioso e tenho uma irritante mania de duvidar. Já tive problemas por causa disso. Contudo, por duvidar, já me livrei inúmeras vezes do constrangimento de espalhar mentiras. Aprendi muita coisa interessante, fiz novos amigos e me aproximei ainda mais de pessoas muito queridas por conseguir enxergá-los por uma perspectiva que seria impossível mantendo minhas próprias proibições.
Com isso em mente, chego ao meu mais recente objeto de exame e com boas coisas a reter. Se chegou até aqui, tenha paciência comigo e continue lendo!!!
No final de 2015, vi uma postagem feita no Facebook por uma amiga. Tratava-se do link de um vídeo e um comentário mais ou menos assim: “clique no link e deixe seu deslike”. O título do vídeo, sem o “examinem tudo” me sugeria um motivo para a postagem: “Meu Corpo, Minhas Regras - Olmo e A Gaivota / My Body, My Rules - Olmo and The Seagull”. Imediatamente, acreditei que ela pedia o deslike apenas por se tratar de um discurso pró-aborto. “Que radical essa minha amiga!”, exclamou meu lado sabotador. “Vamos assistir ao vídeo inteiro?”, sugeriu meu lado examinador.
Vendo o vídeo inteiro, percebi que o que a incomodou não foi necessariamente a mensagem pró-aborto, mas um desnecessário e infeliz trecho que questiona a virgindade de Maria, dogma tão caro ao cristianismo. Minha opinião sobre o aborto é diferente da exposta no vídeo, mas não teria me incomodado com ele sem a menção a Maria. Achei gratuito, desrespeitoso e absolutamente desnecessário para o propósito do vídeo que, além da defesa da descriminalização do aborto, faz parte da campanha publicitária do filme “Olmo e a Gaivota”.
No momento em que escrevo, o vídeo possui mais de 1 milhão e meio de visualizações e mais de 80% de desaprovação. O trailer do filme, postado no mesmo canal, possui semelhante desaprovação e uma enxurrada de comentários raivosos de pessoas contrárias ao aborto. Eu poderia ser mais uma dessas pessoas, mas escolhi examinar. Dei um tiro no escuro e comprei o DVD do filme. Só assistindo ao filme eu poderia dar meu parecer.
Assistindo ao filme, percebo como as pessoas gastam energia entregando-se à ignorância. Fazem campanhas por deduções infundadas. Proíbem a si mesmos de apreciar o que é bom porque não seguem o conselho de Paulo. Além de uma peruca azul, o filme não tem muito a ver com o vídeo da campanha publicitária. Em nenhum momento o filme fala em aborto. Ao contrário do vídeo do YouTube, gostei bastante do filme. Foi uma grata surpresa e um tapa na cara do meu lado sabotador. Vitória para o meu lado examinador!
Olmo e a Gaivota nos coloca na mente de uma mulher que vê seus sonhos se desfazendo diante de uma gravidez de risco. As transformações do corpo e as privações que lhe são impostas pela gestação fazem-na mergulhar em conflitos consigo, com sua profissão, com seus relacionamentos, com sua capacidade de ser mãe, com suas escolhas.
Apesar de não ser um filme irretocável, acerta em nos tornar espectadores desses conflitos. O cinema, a novela e, mesmo pessoas próximas a nós, tendem a nos mostrar sempre o lado sorridente da gravidez e da maternidade. Olmo e a Gaivota nos mostra um lado que nos omitem, sejam pessoas que não sofreram ou, talvez, pessoas que têm vergonha de confessar que nem tudo é bonito quando se tem uma pessoa crescendo dentro do seu corpo.
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