6 de novembro de 2018

Sobre a inutilidade dos dialetos secretos

"Eita, terra!! Esse varão é sapato de fogo! O homem de branco vai usá-lo e, através dele, vai amassar muitos vasos aqui esta noite! O vento vai soprar e vai ter muita ovelha restaurada neste lugar!"

Esse é um "dialeto secreto" pentecostal. Há muitas outras palavras e expressões como "decai", "labaredas", "brado", "derramamento", "cobrir com sangue", "pão vivo" e "vigia" que poderiam ser usadas num diálogo entre pentecostais. Há um personagem que ficou famoso na internet que usa uma gíria pentecostal como sobrenome: Jacinto Manto. É difícil explicar o que significa "manto", mas quem é pentecostal entende!

A questão do ENEM que usou um "dialeto secreto" da comunidade LGBT gerou polêmica simplesmente porque somos bastante homofóbicos. A questão, que eu li, interpretei e respondi corretamente não é sobre gays! É sobre interpretação de texto e noções de linguística. O foco é a linguagem e não seus usuários.

Poderiam ter usado o exemplo do "dialeto pentecostal", como o que usei acima e a questão teria o mesmo efeito teórico, mas não o mesmo efeito social. A questão seria lida pela maioria das pessoas sem qualquer alarde e, provavelmente, repercutiria apenas dentro dos meios pentecostais. Dificilmente seria notícia.

Há muitas culturas no Brasil, com suas próprias manias, maneirismos e gírias. Estaríamos bem servidos no ENEM com qualquer "dialeto secreto", como o dos cearenses, dos gaúchos, dos manos do Capão e da ZL, dos geeks, dos publicitários, dos jogadores de Magic, dos músicos, dos funkeiros, dos juristas etc. Escolheram um dialeto gay e a questão cumpriu seu objetivo.

O ENEM fez seu papel de procurar estudantes antenados, capazes de ler um texto e o interpretar, e de entender minimamente que existe uma língua formal que é diferente da multiplicidade de falares populares que se desenvolvem na complexidade das relações sociais. O aluno que pretende ingressar num curso de Letras, Ciências Sociais, Filosofia, História, Geografia, Psicologia, Pedagogia, Jornalismo, Enfermagem e até num concorrido curso de Medicina, precisa entender esse tipo de coisa.

Engana-se quem acha que a questão tratou de tema sem utilidade.