Algumas histórias narradas no livro de Gênesis são amplamente conhecidas em nossa cultura. De todas, certamente a história de um grande dilúvio que teria dizimado quase todos os humanos e animais e, sobretudo, o relato da criação do mundo por um único deus, são as que possuem maior penetração no imaginário popular. Com o desenvolvimento dos estudos bíblicos no âmbito das ciências humanas, muitos pesquisadores têm investido na identificação dos processos de produção e disseminação dos textos bíblicos.
A respeito do Gênesis, podemos afirmar que não se trata de um trabalho realizado por apenas um autor, tampouco que foi produzido integralmente em uma mesma época. O livro é um compilado de relatos provenientes de, no mínimo, duas tradições distintas, amplamente conhecidas como “Sacerdotal” e “Javista”. É importante entendermos essa característica do Gênesis, pois ela afeta diretamente nosso entendimento a respeito do relato da criação pois, apesar de ter chegado até nós através de uma tradição milenar que considera a existência de uma cosmogonia singular, o fato é que o que lemos nos primeiros dois capítulos de Gênesis são dois diferentes relatos a respeito da criação por um deus. O primeiro relato (que identificaremos nesta análise como G1) está narrado entre Gênesis 1,1 e 2,4a, e o segundo (G2) começa em 2,4b e se estende até o final do capítulo 2.
Cronologicamente, G2 é um texto mais antigo, de tradição Javista, e teria sido escrito entre os séculos X e IX a.C.. O texto de G1, Sacerdotal, é mais recente, tendo sua origem no século VI a.C., durante o exílio babilônico.
G1 inicia-se com “No princípio, Deus criou o céu e a terra”. De acordo com Lambert (2008, p.15), a tradução mais adequada do texto hebraico seria algo como “Quando Deus começou a criar o céu e a terra”. Desse modo, a tradicional leitura de Gênesis 1,1 como uma creatio ex nihilo, não é mais do que especulação teológica, sem qualquer relação com o sentido dado pelo autor. Cabe observar que o texto de G1 diz que Elohim criou o céu e a terra, mas não há menção à criação da água, cuja superfície era agitada pelo sopro (ruah) de Elohim no versículo 2, o que corrobora a afirmação de Lambert.
Outro ponto que merece especial atenção nesse versículo, sobretudo por ser um dos aspectos que distinguem G1 de G2, é o fato de que em G1 a divindade é nomeada como Elohim, enquanto em G2 ela recebe o nome de Yahweh. Ainda neste primeiro versículo, merece atenção a utilização do verbo hebraico bara para descrever o processo criativo de Elohim, pois esse verbo é utilizado apenas durante a criação do céu e da terra e, no final da narrativa, durante a criação do ser humano (haadam). De forma geral, em G1 o poder criativo de Elohim é manifesto através de palavras: “haja luz”, “que a terra verdeje de verdura”, “que haja luzeiros” etc. Em G2, por outro lado, Yahweh é descrito como um ser mais pessoal, que cria com as mãos e passeia pelo Jardim do Éden ao lado de sua criação.
O fato de G1 ter sido produzido durante o exílio é importante para explicarmos sua organização narrativa, pois ela é feita como uma espécie de resposta monoteísta a outras cosmogonias mesopotâmicas, especialmente ao mito babilônico conhecido como Enuma Elish. Destacamos duas diferenças entre G1 e o relato da criação em Enuma Elish que demonstram a influência do mito babilônico sobre a resposta do autor sacerdotal de G1.
A primeira diferença diz respeito ao processo da criação. Enquanto o mito babilônico descreve um embate entre deuses, que culminaria na criação do ser humano a partir do sacrifício de um deus, o mito de G1 atribui a criação à ação de um único deus. Outra questão muito importante, que demonstra como G1 é uma resposta a Enuma Elish, diz respeito às motivações para a criação do ser humano, sobretudo relacionadas ao trabalho. No Enuma Elish, o trabalho era realizado por deuses de uma categoria inferior, o que gerava relações conflituosas com os deuses que não trabalhavam. A criação do ser humano daria fim a esses conflitos, pois o trabalho dos deuses menores passaria a ser realizado pelo homem. G1 descreve toda a criação no decorrer de seis dias, sendo o ser humano criado no sexto dia. No sétimo dia, Elohim descansou, ato simbólico que seria assimilado pelos seus autores como legitimação para a necessidade de um descanso semanal.
G2 não se prende em detalhes a respeito da criação “da terra e do céu”. A narrativa se inicia no tempo em que Yahweh “não tinha feito chover sobre a terra e não havia homem para cultivar o solo” (Gn 2,6), e é focada na criação do homem e da mulher. Nesse relato, Yahweh cria primeiramente o homem a partir do barro (ou argila), e a mulher teria sido criada em um segundo momento, moldada a partir de uma costela que Yahweh retirou do homem. Não há, nesse texto mais antigo, nenhuma referência a um processo de criação em seis dias. G1, por outro lado, está focado justamente nesse processo criativo que se encerraria com o dia em que Elohim descansou. Não há, para o autor sacerdotal, a necessidade de diferenciar a criação do homem da criação da mulher, conformando-se com a afirmação de que “Deus criou o homem à sua imagem e semelhança [...] homem e mulher ele os criou” (Gn 1,27).
Observação: Todas as citações são da Bíblia de Jerusalém, edição de 2002.
Referência
LAMBERT, Wilfred G. Mesopotamian creation stories. In: GELLER, Markham J., SCHIPPER, Mineke (ed.). Imagining creation. Leide: Brill, 2008. p.15-59.